Fonte: Feeb RJ/ES
O 2º Congresso da Contraf/CUT, marcado para os dias 14 a 16 de abril, terá, no primeiro dia, uma discussão urgente: a regulamentação do sistema financeiro nacional. A legislação em vigor é da época da ditadura e não atende mais às necessidades do país.
A Constituição de 1988 dedicou um artigo – o 192 – ao tema, mas, quase 21 anos depois, a regulamentação por lei complementar ainda não saiu. Diante da crise financeira mundial, que evidenciou as consequências da falta de regulamentação da atividade, o debate sobre a construção de uma nova legislação toma corpo, e a Contraf/CUT vai retomar as propostas que já vêm de 1992 para atualizá-las e, novamente, enviar ao Congresso Nacional.
O jornal UNIDADE, publicação da Feeb RJ/ES, conversou com Miguel Pereira, Secretário de Finanças da Contraf/CUT, que esclareceu os pontos da legislação atual e da proposta do movimento sindical bancário.
Como é a legilação brasileira de regulamentação do SFN?
Todo o arcabouço legal, que criou a figura das autoridades monetárias, como Banco Central e Susep, e disciplinou as normas de regulamentação e fiscalização é de 1964. É uma lei obsoleta, de um momento triste da História do Brasil, que é de falta de democracia, de Estado totalitário. Os efeitos são sentidos ainda hoje, porque, por exemplo, BB e Caixa, que são bancos públicos, naquela época, em que o Estado era tudo, tinham uma importância estratégica. No neoliberalismo o Estado passa a ser mínimo, toda a estrutura de estado tem menos importância, então o BB e a Caixa também passam a ter menos importância. Os trabalhadores do BB sentem saudade daquele tempo em que o banco valorizava o servidor, pagava melhor, dava melhores condições de trabalho, porque, naquela época, o papel do banco era um papel de estado, hoje é um papel de mercado. Sendo um papel de mercado, eles não têm mais a mesma valorização.
Esta legislação é rigorosa?
Parece rigorosa, mas somente para a época, disciplinava naquele tempo. É da época, por exemplo, desta lei a criação do Banco Central, que normatiza e fiscaliza bancos. E, como a lei é muito antiga, gradativamente o Bacen veio fazendo alterações, flexibilizando aquela legislação, enquanto autoridade monetária. Mas quem foi que disse que o que é melhor para o país é esta ou aquela medida? A gente tem bem evidenciado hoje o quanto isso é prejudicial, a partir do poder que este Bacen tem de, por exemplo, autorizar a criação da figura do correspondente bancário. Não está previsto este poder de legislar. Está previsto na legislação que o poder de normatizar o funcionamento do sistema financeiro nacional é do Banco Central. Mas aí entra em conflito porque, este poder é de normatizar como convém ao presidente do banco, completamente sem controle da sociedade. E já vimos coisas absurdas acontecendo a partir da caneta do presidente do BC, como socorro a bancos falidos. O Banco Central então, extrapola, no nosso entendimento, seu poder, passa não a normatizar, mas a legislar. Ele configura, desconfigura, altera, modifica, e isso são aspectos que só a lei pode fazer. E quem faz lei é o Congresso Nacional. Com todas as críticas, se é bom ou ruim, foi eleito pela sociedade. É a nossa concepção de sociedade que está representada lá? Não. Os nossos candidatos foram eleitos? Não, que pena que não foram. Mas, por mais que se possa falar que o Congresso não é legítimo, ele é legal e é legítimo, sim, na medida em que as pessoas votaram. Entendemos que o Bacen – essa é a principal queixa – não pode, a seu bel prazer, normatizar e regulamentar o sistema independente da dinâmica das demandas da sociedade, como acontece hoje. Esta legislação está vencida, no nosso ponto de vista. E ainda amarra, porque amarra os bancos, e o Bacen tem a possibilidade de desamarrar ou flexibilizar através das portarias e resoluções – é isso que ele vem fazendo ao longo dos anos.
Em termos de projeto de país, no que isso implica?
Isso não auxilia no debate conjuntural atual, que é sobre desenvolvimento social, crescimento econômico, redução da taxa juros. Por exemplo, esta legislação cria a figura do Conselho Monetário Nacional, que reúne o ministro da Fazenda, o Ministro do Planejamento e o presidente do Banco Central, para decidir qual a taxa de cambio, de juros, a política de crédito, monetária. Três pessoas se reúnem para discutir qual o futuro do Brasil, com todas as repercussões na vida, no emprego, na renda, na produção do país. Não é à toa que a CUT, os movimentos sociais, o movimento sindical, o movimento de empresários, da produção rural, todo mundo grita contra esta taxa de juros, contra este comportamento. Mas estas três autoridades são insensíveis, têm o poder e a autoridade e, por alguns motivos, acabam tomando decisões que não são as mais acertadas. Rediscutir toda a regulamentação do sistema é regulamentar o artigo 192 da Constituição Federal de 1988, que traz princípios bastante avançados. Diz, em seu artigo 192 que o SFN estará à disposição do desenvolvimento da Nação. E isto é o principio básico, banco tem que estar à disposição do crescimento, tem que ofertar crédito para o desenvolvimento do país. E os bancos no Brasil, por uma série de questões históricas e políticas, nunca forneceram crédito, vivem pendurados, ganhando dinheiro fácil, com conjuntura de inflação alta ou de juros altos. Com a inflação alta eles ganham na ciranda financeira. Caso os juros é que sejam altos demais, ao invés de emprestarem à sociedade, investem em títulos públicos do governo. Já houve época em que banco teve 70% dos seu ativos todos em títulos públicos do governo, isso é um absurdo. Banco tem que ter comprometimento social, porque lida com um dinheiro que não é seu, usa dinheiro da sociedade, da população. Tem que ter cuidado, fiscalização. O Bacen não fiscaliza. Toda hora quebra um banco e os banqueiros dizem "ah, eu não sabia". Como, não sabia? É porque não tem fiscalização.
Então, rever e atualizar toda a legislação, que é de 1964, passa pela regulamentação do Artigo 192 com os princípios e bases que a própria CNB elaborou, um projeto de lei formatado em 1992 e está lá no Congresso Nacional. Nossa tarefa é atualizar esta proposta de regulamentação e rever tudo isso, que está obsoleto, anacrônico, que não favorece a sociedade – ao contrario, impede o crescimento e um desenvolvimento longo e sustentável do país.
Qual o impacto da emenda 40/2003, proposta pelo então senador José Serra, na legislação de regulamentação do sistema financeiro da Constituição de 1988?
A Constituição, inicialmente, no artigo 192, dizia algumas coisas, inclusive fixava o limite de juros legais ao ano que era 12%. A Emenda 40, de 2003, retira o limitador dos juros e também diz que o Sistema Financeiro Nacional não será mais regulamentado por uma lei complementar. Diz que serão diversas leis. Faz muita diferença para a regulamentação e para o que a Contraf, então CNB, acumulou. Nós tínhamos uma visão geral do sistema, que é como entendemos que deve ser, e continuamos defendendo esta mesma estratégia, trabalhando com uma proposta global de regulamentação. À medida que a Constituição, depois da Emenda 40, diz que o SFN será regulamentado por diversas leis, tudo poderá ser pulverizado e o fio condutor, o principal espírito da regulamentação, que é a democratização do crédito, se perde. Banco tem que ser para fornecer crédito, tem que ser democratizado, que todas as pessoas tenham acesso a ele. Se a regulamentação vier fatiada, regulamentando apenas o que for de interesse do capital, das grandes empresas ou dos bancos, e não da sociedade, isso não vai acontecer. Quando é uma única lei, está garantido que haja começo, meio e fim. Se for por diversas leis, poderá ser regulamentado fatiadamente e isso não vai garantir, necessariamente, o que é o espírito principal d a regulamentação, fazendo o debate do acesso do crédito.
Qual é a proposta do movimento sindical?
A proposta foi construída no início dos anos 90. Houve um ciclo de debates, com participação de representantes da sociedade civil, foi debatida com o movimento sindical, em grupos de trabalho, discutimos com a Academia e construímos uma proposta que foi enviada ao Congresso em 1992. Como não houve regulamentação até o início dos anos 2000, em 2003 a CNB refez e atualizou o debate. Essa proposta era para regulamentar o que estava originalmente na Constituição de 1988, antes da Emenda 40, que uma única Lei Complementar iria regulamentar o Artigo 192. Nós atualizamos depois da alteração da Emenda 40 e estrategicamente, mesmo assim mantivemos a proposta de regulamentação geral, no todo, e não por fatias. Basicamente, na nossa Iniciativa Legislativa, o carro-chefe do debate é a democratização do crédito, porque o crédito no Brasil é altamente elitizado, caro, direcionado, os bancos atendem quem não precisa e quem precisa tem a maior dificuldade para ter crédito. O país não cresce desse jeito. Não tem desenvolvimento social sustentável com este tipo de atuação. Crédito é tudo. Está agora evidenciado pela crise financeira mundial que, primeiro foi uma crise financeira e agora está virando uma crise estrutural porque falta crédito. As instituições que têm a obrigação de fornecer crédito estão contaminadas, estão quebrando no mundo todo. Exceção do Brasil, porque, aqui, os bancos estão líquidos e sólidos, mas também geram o mesmo problema, porque não querem conceder crédito, preferem comprar títulos públicos. O nosso princípio-base é a larga democratização do acesso ao crédito. Na proposta, redefiníamos o papel de cada agência controladora – o Banco Central, a Susep (Superintendência de Seguros Privados), todos os agentes controladores do sistema. Criávamos a figura de uma legislação votada no Congresso Nacional, um projeto plurianual que estabelecia metas de crescimento e metas, para os bancos, de concessão de crédito. E, anualmente, o Congresso Nacional e outros agentes que estão colocados no projeto acompanhariam a aplicação, como se fosse um orçamento.
Como funcionaria isso?
A legislação criaria obrigações e rotinas. O país quer crescer quanto? Tanto. Precisa de quanto de oferta de crédito? Tanto. Os bancos seriam, então, obrigados a conceder esse montante de crédito. E haveria mecanismos de acompanhamento para isso. O Banco Central teria revista a sua atuação, porque, basicamente, tem um papel de fiscalização do poder de compra da moeda – que dialoga com a questão da inflação -, fiscalização dos bancos e edição de normas. Na proposta, nós revemos esta competência do Banco Central. Também faz parte, mas não é a essência do debate, a discussão se o Bacen deve ser independente ou autônomo, não vem ao caso, porque ele tem que ter alguma autonomia administrativa, mas não pode ter a independência ou legitimidade para legislar sobre o funcionamento dos bancos e sobre a legislação geral do sistema. Este projeto de legislação limita os poderes do Bacen, impedindo o banco de criar normas que firam, vão além ou inovem, mas que não estejam na lei, para favorecer funcionamento de bancos. Mas entendemos que o Bacen tem que ter alçada administrativa para controle e fiscalização, sim.
A proposta faz alguma referência ao papel do BB e da CEF?
Sim, nos concentramos na definição do que é a atuação de banco público, no papel de BB, Caixa, BNDES, do próprio Bacen, BNB, Basa, no país. Até então, nós tínhamos a figura dos bancos estaduais e nós também definíamos o papel deles neste processo de desenvolvimento. Era um projeto que, basicamente, falava da democratização do crédito, dava papel, obrigava os bancos a se comprometer com questões de relevância macroeconômica, que é a concessão de crédito, e definia papéis para BB e Caixa, diferente do que é hoje. Como eles não têm papéis e ainda entraram num processo de quase privatização e estado mínimo, ficaram perdidos disputando o mercado privado com Bradesco e Itaú, e a gente não concorda com isso, achamos que esta não é a melhor dinâmica.
Como vai ser o debate sobre regulamentação do SFN no Congresso da Contraf?
Nós pretendemos, novamente, à luz do que aconteceu agora no sistema financeiro mundial – depois que acenderam todas as luzes vermelhas – rediscutir a dinâmica de organização dos bancos no mundo, estamos revendo tudo que foi falho, tudo que provocou a crise, para ver se nosso projeto já contemplava. E, se não contemplava, será adaptado para passar a contemplar. Por sorte, no Brasil – e aí é que fica claro como é importante haver leis – a legislação que permitiria que o Bacen flexibilizasse o papel dos bancos é muito recente. Então, não deu tempo dos bancos brasileiros se contaminarem com este subprime americano que foi para a Europa, atingiu a Ásia e tudo mais, porque os bancos brasileiros, além de conservadores, nacionais, cuidarem do mercado doméstico, também têm pouca presença no mercado internacional. Foi o que salvou. Se nós já tivéssemos uma legislação liberalizante há mais tempo, os bancos brasileiros provavelmente estariam passando pela mesma dificuldade que os demais bancos mundiais enfrentam.
Neste segundo Congresso da Contraf/CUT, todo o primeiro dia vai ser dedicado à discussão do funcionamento do sistema financeiro, nacional e mundial. Estamos convidando personalidades da academia e estudiosos. Nossa pretensão é fazer a atualização do projeto que a Contraf já tem durante os debates do Congresso. É óbvio que os desdobramentos de algumas medidas terão que ser feitos depois, mas as diretrizes políticas nós pretendemos definir durante o Congresso, no primeiro dia. Convidamos gente da Europa, da Ásia, dos Estados Umodos para falar sobre esta crise financeira mundial para a gente se apropriar dos modelos, o que deu errado e o que deu certo, para incluir na nossa legislação.
Neste primeiro dia, haverá debate, deliberação, mas também muita formação. O objetivo principal não é de formação na área, mas, obviamente, o desdobramento de todo este debate, que vai ser feito para que possamos formatar uma nova proposta de regulamentação do sistema, sirva também de modelo para definição de um modelo de formação sindical que possa ser usado para realizarmos visitas em todo o país. Para levar conhecimento, divulgar junto aos dirigentes sindicais, para que eles dinamizem nossa proposta junto à sociedade local, para que não se perca a oportunidade de debater o problema, dada pela conjuntura da crise financeira mundial, em que todos os países, todos os governos estão preocupados e dizendo que precisa mudar, aumentar, criar uma regulamentação. Para que possamos entrar neste vácuo que foi criado pela crise financeira mundial e possamos aproveitar para atualizar o debate com muito mais qualidade – porque ele não é de hoje, já o fazemos há 18 anos e precisa só ser atualizado e ganhar mais aliados na sociedade. É preciso debater a questão para fazer com que os bancos deixem de ser somente vendedores de papéis, produtos e serviços e vivam de tarifas, como vivem. Para isso, há uma serie de ações que precisam ser tomadas junto com o debate, para a regulamentação estar toda no mesmo barco. Junto, vem o debate da redução dos juros, do spread, a regulamentação do Conselho Monetário Nacional, casado com um novo papel dos bancos.
O que os trabalhadores, principalmente os bancários, ganham com esta mudança de papel dos bancos?
Se conseguirmos concluir isso, estaremos prestando um serviço ao país e também aos trabalhadores, de maneira geral, e particularmente aos bancários, que deixarão de ter essa rotina sacrificante de metas para vender produtos e serviços e arrecadar tarifa, para banco que arrecada muito dinheiro. Essa fonte de recursos está ligada à esta ação dos bancários. A outra fonte é a compra de títulos públicos. Os bancos vivem basicamente de comprar títulos públicos numa ponta – 50% dos ativos dos bancos estão investidos em títulos públicos do governo, que são seguros, rentáveis, não têm risco nenhum – mas o grosso está vindo de venda de produtos e serviços. Se tivermos uma regulamentação que discipline o funcionamento, dê transparência e obrigue os bancos a conceder crédito, o Brasil vai ser outro país e, aí, sim, o emprego dos bancários vai voltar a ser valorizado, reconhecido, com importância de Estado, e vai ser melhor remunerado, com melhores condições de trabalho. Se não fizermos esse debate de como funciona o sistema, que tem a prerrogativa de se autorregulamentar, como é hoje, vamos lutar, lutar e lutar enquanto sindicatos, mas estaremos sempre correndo atrás do prejuízo, nunca ao lado ou à frente para construir propostas melhores para os bancários. Estaremos sempre na rabeira, tentando dar respostas ao que os bancos já fizeram. E o papel do movimento sindical bancário enquanto ator social é contribuir com isso para que haja mais igualdade entre as classes sociais.