Ministra do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome nos governos Dilma Rousseff, a economista Tereza Campello explica que a atual base de dados do governo federal, com informações constantes no Sistema Único de Saúde, no Cadastro Único e no Bolsa Família, é fundamental para que o Estado brasileiro trace uma estratégia eficiente para enfrentar a pandemia do coronavírus junto à população pobre.

Da Inglaterra, onde atua como pesquisadora convidada no Futuro Food Beacon, na Universidade de Nottingham, em projetos na área de segurança alimentar, Tereza Campello lembra que o Brasil perde muitas oportunidades no que se refere ao gerenciamento da crise. Segundo ela, por conhecer todo o território nacional e suas diferenças regionais, a Caixa tem todas as condições de contribuir com a tarefa de o país voltar a contar com um projeto de desenvolvimento com inclusão social.

Em entrevista exclusiva ao portal da Fenae (Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa), Campello analisa técnica e politicamente os impactos da crise na economia, na saúde pública e nas atividades dos trabalhadores formais e informais. A economista avalia que, neste momento de pandemia, a importância dos bancos públicos fica ainda mais nítida. “Podemos pagar o auxílio emergencial porque temos a Caixa, um banco público acostumado a prestar esse tipo de serviço”, afirma. Segundo ela, o país está conseguindo adotar algumas medidas, porque nem tudo foi privatizado, como era o propósito do atual governo.

Doutora em Saúde Pública pela Fiocruz, Tereza Campello já ocupou a subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil no governo Luiz Inácio Lula da Silva, no qual coordenou projetos importantes, como o Programa Nacional do Biodiesel. Participou também da criação do Bolsa Família.

Confira a íntegra da entrevista: 

Quais as perspectivas para a economia do Brasil em um cenário de pandemia do coronavírus?

Tereza Campello – O Brasil, como todos os países do mundo, vai enfrentar uma fase muito difícil, do ponto de vista econômico. É lógico que falamos de uma crise sanitária combinada com uma crise econômica. No caso brasileiro, temos ainda que considerar que existe uma crise política, que piora, sobremaneira, o quadro sanitário e o da economia, em especial.

Mas não tem mágica. Pelo que temos observado no mundo todo, só existem dois caminhos e ambos são pedregosos. O primeiro deles é ignorar a crise sanitária para salvar a economia, conforme tem defendido o presidente Jair Bolsonaro, quase que isoladamente. Qual é a consequência de uma decisão dessa natureza? Rapidamente, haverá um caos na saúde pública, com provável aumento no número de doentes graves e assim por diante. Isso vai crescer e vai gerar morte e pânico.

Então, aquilo que inicialmente se tentou evitar, a paralisação da economia, vai acabar acontecendo: as pessoas vão ficar com medo e vão para dentro de casa, já com processo descontrolado de contaminação, causando impactos nocivos para a saúde pública. Foi essa, em um primeiro momento, a estratégia adotada em algumas cidades da Itália. A consequência foi danosa, não apenas para a saúde, mas também para a economia. Foi isso o que, inicialmente, tentou fazer o governo da Inglaterra, sob a alegação de que era melhor enfrentar a crise sanitária de uma vez, embora isso tenha durado uma semana. Logo que os ingleses viram os números, mudaram de estratégia e, mesmo assim, a Inglaterra será provavelmente o país na Europa que irá enfrentar o coronavírus de maneira mais grave, com mais números de casos e de mortes. O presidente do Brasil resolveu seguir o pior conselho. Possivelmente, vamos pagar muito caro por essa ação criminosa, do presidente da República, de convocar a população a ir para a rua.

O outro caminho, seguido pela grande maioria dos países, mesmo com variações de “lockdown”, é o de fechar tudo: do comércio aos serviços, deixando apenas algumas coisas funcionando. Alguns países têm construído uma estratégia muito eficiente de testagem. Todos, porém, adotaram medidas duras do ponto de vista da crise sanitária e buscaram mitigar as consequências econômicas. Isso foi feito com políticas públicas. É o Estado que enfrenta os dois problemas, o de saúde e o da economia, e garante que a população tenha condições de ficar em casa.

Então, o mais sensato é a opção pelo segundo caminho, o da precaução e o da busca por se preservar.

Como essa crise afeta a vida da população?

Tereza Campello – No mundo todo a população está sendo impactada de várias formas. Primeiro, com a própria doença. Sabemos que essa pandemia chegaria ao Brasil desde janeiro. Podíamos, então, ter nos antecipado para preservar a população. Qual o ambiente hoje no país? Vivemos uma situação de enorme estresse, com medo e insegurança. Há o desconhecimento a respeito do vírus, não só da população, mas da própria ciência. Apesar de a doença ser ainda uma incógnita, a busca por uma cura mais rápida está sendo construída com um grande esforço dos cientistas, que em todo o mundo estão se solidarizando: quem pesquisa abre os dados, para que rapidamente haja o conhecimento de uma solução para a crise sanitária.  

No caso do Brasil, como o governo não tem ajudado a população a se proteger, gera-se uma situação de maior insegurança, instabilidade e medo do que em qualquer outro país. Se tivesse alternativa, a população estaria em casa, mas a grande maioria desse povo precisa viver e trabalhar. Então, o governo não dá cobertura e não apoia a população com a disponibilização de recursos em tempo hábil. Há muita gente sem dinheiro hoje. Com isso, joga-se para a população a decisão de ficar ou não em casa.

Essa não pode ser uma decisão do indivíduo, até porque a questão se refere à saúde pública, havendo necessidade de que seja suportada pelo Estado. ‘Fiquem em casa que vamos garantir a renda para vocês! Fiquem em casa o trabalhador, o informal, o empresário, porque estamos enfrentando uma situação de saúde pública importante e a contribuição de todos vocês é ficar em casa!’. Esse deveria ser o recado do governo: pagar a população para ficar em casa.

Diante de uma população sem recursos e sem poupança, a instabilidade da situação é a principal questão a ser enfrentada pelo Estado, para evitar que as pessoas sejam obrigadas a sair para as ruas, correndo o risco de ficarem doentes ou passem fome confinadas em suas residências. O Estado não pode aceitar nenhuma das duas alternativas. Cabe-lhe garantir que a população esteja protegida, tanto do ponto de vista da saúde quanto do emprego e da renda.

Qual o peso do Estado neste contexto?

Tereza Campello – O Estado deve orquestrar o país todo. O Brasil conta com uma vantagem muito grande. Trata-se da rede de saúde, de educação, de assistência social: um conjunto das políticas públicas articuladas, envolvendo o governo federal, os estados e os municípios. Cabe ao governo federal orquestrar esse grande sistema, ajudando a dar uma direção, mas recusa-se a fazer isso.

Estamos assistindo, no âmbito dos governos estaduais e municipais, o Estado atuar para garantir, minimamente, a população em casa. Essa medida está correta, na minha avaliação. São ações na área de saúde para orientar a população, esperando-se que o governo federal faça o aporte dos recursos, mas isso não tem acontecido. O que se vê, muitas vezes, é muita propaganda e blá-blá-blá por parte do governo federal, alegando dispor de tantos bilhões, mas esse dinheiro não chega aos estados, municípios e tampouco à população.

O Poder Executivo federal nega-se até mesmo a ser o maestro da crise, dando orientação correta, sendo essa uma grande falha. Uma medida que poderia ser adotada seria a de garantir que a rede pública de saúde pudesse dispor de uma injeção de recursos para comprar equipamentos de segurança aos médicos e enfermeiros, os profissionais que têm atuado na linha de frente e estão desassistidos. Precisamos de respiradores, de novos leitos da UTI. Tudo isso poderia ter sido viabilizado desde janeiro, mas essas medidas continuam postergadas.

O governo federal tinha também, há pelo menos dois meses, que assegurar que a população pobre do Bolsa Família, do Cadastro Único e os informais recebessem os recursos para sobreviver. Como nada disso foi feito, o Partido dos Trabalhadores e a oposição no Congresso Nacional apresentaram um projeto de lei e aprovaram a Renda Básica Emergencial.

Apenas agora, mesmo assim de forma confusa, o governo federal começa a esboçar uma orientação sobre o que a população de baixa renda, o microempreendedor individual, o trabalhador informal ou autônomo e o agricultor familiar podem fazer. No caso dos trabalhadores formais, igualmente ameaçados pelo risco do desemprego, não houve uma mobilização efetiva. O salário-desemprego segura uma situação por um período curto. Quer dizer: esse trabalhador vai enfrentar a quarentena sabendo que, ao fim desse período, pode estar desempregado. Isso é inaceitável!

Em decorrência disso, apresentamos um projeto de substitutivo à proposta do governo, denominado “Ninguém Demite Ninguém”, que sugere um modelo de garantia de renda para os trabalhadores de diversos estratos sociais, além de medidas para preservar as empresas brasileiras. Na contramão disso, o atual governo acabava incentivando o segmento empresarial a demitir trabalhadores, de modo a impor uma perda salarial gigantesca para a população. Foi a partir dessa medida de redução salarial que um grupo de economistas divulgou um documento, no qual é mostrada a crueldade de uma realidade no Brasil, causada pela redução de 30% na renda.

É um impacto violento no consumo, com mais insegurança e desespero. Queremos salvar vidas. Queremos empregos e renda, e que as empresas estejam saudáveis tão logo essa pandemia passar. Temos que estar com o país preparado para a retomada do crescimento, que é exatamente o que não vem ocorrendo. Ao jogar a população pobre na miséria, ao deixar trabalhadores no desemprego e ao não oferecer assistência para as empresas, o governo desprepara o país. Assim, não teremos como atravessar esse momento de maneira adequada e chegar ao fim da crise sanitária em condições de recuperar a economia do país.

Qual deve ser a atuação da Caixa Econômica Federal e dos bancos públicos na proteção aos trabalhadores?

Tereza Campello – O Brasil, apesar do atual governo, ainda conta com os bancos públicos, em especial a Caixa Econômica Federal, cuja importância para o desenvolvimento do país precisa ser reafirmada sempre mais. O banco quase foi privatizado. Se dependesse desse governo, a Caixa teria sido vendida lá atrás.

A Caixa vem sendo ameaçada desde o governo Temer. E isso é um retrocesso sem tamanho! Imagina o país enfrentar essa crise sem contar com um banco com essa característica. Vale lembrar que a Caixa não é só um banco com tradição de décadas, mas possui experiência, como nenhum outro, para chegar na população pobre e vulnerável. 

É a Caixa que atua, por exemplo, no Programa Bolsa Família e na organização do Cadastro Único, um patrimônio do Brasil. Nosso país talvez seja um dos poucos em desenvolvimento que conte com um cadastro único, dispondo de informações sobre a grande maioria da população de baixa renda. Isso tudo é administrado em parceria do governo com a Caixa. Esse banco chega em tudo quanto é município, pagando o Bolsa Família ou porque tem agência no lugar ou porque atua em parceria com as lotéricas e os Correios para beneficiar a população pobre.

Afora isso, a Caixa tem uma experiencia fantástica com o Minha Casa, Minha Vida. O banco já acumulava experiências anteriores no pagamento do seguro-desemprego e na garantia de políticas sociais, ajudando o Estado a administrar obras públicas em pequenos municípios. Quer dizer, a Caixa conhece o território nacional, de Norte a Sul, sabe as diferenças regionais e contribui para o que o governo federal possa fazer a ponte com as Prefeituras.

Desde janeiro, portanto, o governo federal poderia ter escutado quem possui experiência de como chegar a essa população pobre, e isso a Caixa tem de sobra, e pode ajudar no repasse do dinheiro para a construção de UPAs e postos de saúde, por exemplo. No Brasil, há toda uma rede que poderia estar sendo acionada para oferecer uma outra condição de enfrentamento dessa crise sanitária, contribuindo também para combater a crise econômica. Estamos, cada vez mais, desperdiçando tudo isso. 

Que futuro você enxerga para o nosso país?

Tereza Campello – O Brasil está sendo confrontado com essa experiência de enxergar o Sistema Único de Saúde (SUS), tantas vezes desvalorizado, funcionando. E passando a enxergar a importância do SUS para governo federal, estados e municípios. Talvez sejamos um dos poucos países em desenvolvimento no mundo que disponha de um sistema de saúde universal e gratuito, contando ainda com a Caixa Econômica Federal e com um modelo de Cadastro Único.

O coronavírus está obrigando o país a enxergar a importância de ter uma rede de proteção social, como parte de uma estrutura pública organizada. Terminada essa fase trágica, teremos que lutar para que o SUS seja mantido e fortalecido, acabando com a Emenda Constitucional 95, que limita os recursos para a saúde e educação. É preciso também garantir que a Caixa não seja privatizada e que o Cadastro Único continue sendo valorizado, além de um conjunto de outras políticas públicas, como o sistema de assistência social e o da educação.

Temos, então, uma chance de sair dessa situação gravíssima. E que possamos, rapidamente, mudar de rumo. É lamentável que tenhamos perdido muito tempo, tendo em vista que nossa conta será alta em números de doentes e de mortos, com forte responsabilidade do governo federal, que vacilou e continua atrapalhando a área de saúde de se organizar, deixando de operar, quando o momento exigia, com ferramentas como a Caixa e o Cadastro Único.

Vamos sair dessa crise tendo a certeza da importância do papel do Estado. Assim, o país e a sua população poderão voltar a contar com um projeto de desenvolvimento com inclusão social. Isso só será possível com a superação desse governo, que é cruel e se coloca contra o povo.

 

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