Um observador desatento do futuro que se debruçasse sobre os anos do governo Bolsonaro até 2021 poderia constatar que houve aumento na criação de empresas públicas. Segundo dados do Boletim das Estatais do Ministério da Economia, em 2016, o País possuía 154 estatais, sendo 106 subsidiárias; em 2017 passou a 146, caindo para 98 o total de subsidiárias. Já no último ano do governo Michel Temer, 2018, houve nova redução, passando a 134 empresas, sendo 88 subsidiárias. Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, o número de estatais aumentou para 200, com salto na criação de subsidiárias, chegando a 154. E no início de 2020 eram 197 as empresas públicas, com 151 subsidiárias.
Um pouco mais de atenção, porém, revelará um quadro muito diferente. Longe de defender o patrimônio público nacional, o que o governo federal tem feito é alicerçar uma estratégia para facilitar a venda das empresas públicas sem que para isso necessite do aval do Congresso Nacional. Uma deliberação do Supremo Tribunal Federal em 2019 proibiu a privatização de estatais sem o aval do Congresso Nacional, mas permitiu a venda de subsidiárias pelo governo Federal. A decisão vem sendo objeto de contestação por diversas entidades, partidos e pelo Senado Federal.
Para ilustrar a manobra ´criativa´: em 2018 a Eletrobrás tinha 30 subsidiárias; pulou para 70 em 2019 e passou a 25 no início desse ano; no mesmo período a Petrobras saiu de 35, saltou para 50 e hoje tem 49, enquanto a Caixa possuía apenas três em 2018 e hoje já são 10. Com as novas empresas veio junto a criação de cargos na alta administração, indicações do governo para diretores, conselheiros de administração e fiscal. Uma realidade que destoa da diminuição drástica de trabalhadores no setor, quase 100 mil desde 2015.
Com o surgimento de subsidiárias são transferidas funções essenciais da empresa mãe, é o chamado “core business”, que passa para a nova empresa a ser vendida ao investidor privado. Hoje, de acordo com levantamento realizado pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e a consultoria Contato, o número oficial de 38 processos de privatização se eleva para pelo menos 106 com as operações que envolvem a criação dessas empresas subsidiárias controladas pelo Estado, parte delas já contando com parceiro privado.
Sob o comando do ministro da Economia, Paulo Guedes, que reiteradas vezes deixou explícita sua preferência pela venda do patrimônio público, a lógica deste modus operandi se mostra ainda mais perversa: essas novas empresas são criadas com investimentos públicos e em seguida entregues ao capital privado, onerando o custo pago pela sociedade.
Denúncias de sindicatos de trabalhadores, partidos políticos e ações do Ministério Público apontam controvérsias no preço de venda de operações como as do Complexo Eólico Campos Neutrais, da Eletrobrás; da Refinaria Landulpho Alves (Rlam), da Petrobras, e de ativos do Banco do Brasil (BB), que vendeu carteira de crédito para fundo administrado pelo BTG.
Ao promover a privatização, o País perde a capacidade de superação da crise econômica e entrega seu patrimônio para multinacionais, muitas vezes estatais nos países de origem, caso dos bancos públicos chineses que vêm comprando ativos no Brasil. Perde capacidade de concorrência e profissionais gabaritados: exemplo ocorre atualmente no Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), única empresa da América Latina a produzir chips e que acabou de ser liquidada pelo governo federal, justamente quando acontece uma das crises mais impressionantes de escassez de microchips para a fabricação de equipamentos eletrônicos, computadores, celulares e mais. Os trabalhadores do Ceitec estão sendo demitidos e alguns contratados para atuar fora do País.
Tudo isso prova que o Brasil segue na contramão do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, os Correios estão sob a direção do Estado e foi por meio deles que os norte-americanos receberam auxílio financeiro para a pandemia do coronavírus, embora não disponham de um banco público do porte da Caixa para tal operação (receberam o pagamento via cheque). O mesmo governo dos EUA acabou de anunciar medidas para ampliar investimentos públicos nas áreas de educação, saúde e desenvolvimento, enquanto o Reino Unido acaba de criar um banco público para financiar infraestrutura.
Pesquisa do Transnational Institute (TNI) traduzida para o português e publicada no livro “O Futuro é Público” pelo Comitê Nacional em Defesa das Empresas Públicas e a Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae) apresenta cerca de 1.400 casos bem-sucedidos de reestatização em mais de 2.400 cidades de 58 países. O apagão no Amapá ocorrido no final de 2020 ilustra bem a urgência de se rediscutir esse processo de privatização no Brasil. Em menos de 10 anos de concessão sob controle privado a Subestação de Macapá explodiu, incendiou e colapsou. Frente à incapacidade do setor privado para resolver o problema, o governo teve que pedir socorro para uma estatal, a Eletronorte, que pertence ao sistema Eletrobrás e que o próprio governo deseja privatizar.
Por fim, nesse último ano marcado pela pandemia, os serviços e as empresas públicas foram e continuam sendo imprescindíveis para o povo brasileiro. Desde o Sistema Único de Saúde (SUS) à frente do combate da doença até a fabricação de vacinas pelos laboratórios, a própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (informações do governo federal apontam que mais de 46 serviços da Anvisa considerados essenciais para combater a pandemia foram digitalizados até meados do ano passado) e o desenvolvimento de pesquisas em universidades, passando pela Caixa com o atendimento a milhões de pessoas, tudo revela, de forma explícita, o quanto são insubstituíveis na vida da sociedade brasileira.
Porque, sendo público, será sempre para todos.
*Rita Serrano é mestra em Administração, representante dos empregados no Conselho de Administração da Caixa Econômica Federal, conselheira fiscal da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa (Fenae) e coordenadora do Comitê Nacional em Defesa das Empresas Públicas